terça-feira, 23 de outubro de 2007

A Fênix de gelo

Um ponto que fez a diferença: trabalho de equipe (foto: autosport)

Por Otto Jenkel

Talvez nem Alfred Hitchcock, o maior cineasta de suspense da história, pudesse bolar um roteiro tão espetacular como o que assistimos nesse final da temporada de F1. A vantagem de pontos que o inglês Lewis Hamilton tinha no campeonato era tão grande que somente uma sucessão de fatos poderia evitar que ele se tornasse o primeiro campeão da F1 no seu ano de estréia. Da mesma forma, tudo parecia perdido para Kimi Raikkonen, que, faltando duas provas para o final do Mundial, teria que descontar 17 pontos, em 20 possíveis, que o inglês tinha de vantagem sobre ele.

Impossível mudar esse roteiro, diriam muitos. Só acontece no cinema, diriam outros. O que as pessoas não levaram em consideração é o que torna o esporte em geral tão fascinante: a incerteza. Mesmo sabendo que o seu clube de futebol é muito inferior a um outro, você vai a um estádio, porque acredita, mesmo secretamente, que o imponderável pode acontecer. Quem poderia imaginar que o Uruguai pudesse ganhar do Brasil em pleno Maracanã, na final da Copa de 1950? Ou que George Foreman pudesse perder para um (aparentemente) decadente Mohammed Ali na disputa do título mundial de pesos pesados do boxe, em 1974, no Zaire?

Na F1, o exemplo mais recente aconteceu em 1986, quando Nigel Mansell era o favorito absoluto na disputa do título contra Alain Prost e Nélson Piquet. As Williams do inglês e do brasileiro se digladiaram o campeonato inteiro, do que se aproveitou o francês para chegar na Austrália, última prova do ano, com chances de ser campeão. A situação era semelhante a atual. Somente uma vitória de Prost e uma corrida desastrada de Mansell poderia tirar o título do inglês (ver coluna anterior). No fim das contas, tudo conspirou contra Mansell, que perdeu o título para Prost.

Na época, o francês corria na McLaren, equipe que já era chefiada por Ron Dennis. Este saboreou um título considerado impossível, e a partir daí a McLaren se tornou o maior sinônimo de equipe bem organizada na F1. A Williams em 1986 brincou com os caprichos do destino. Deu chance ao azar. E foi exatamente isso que aconteceu nesse final de temporada de 2007. Desta vez, Dennis provou do mesmo veneno que a Williams em 1986, e a McLaren sofreu a maior derrota de sua história. O roteiro, contudo, se apresenta como uma crônica de uma tragédia anunciada.

Ao declarar que a McLaren estava contra Fernando Alonso, e automaticamente a favor de Lewis Hamilton, Dennis assinou a própria sentença de morte. Não levou em conta justamente essa incerteza que torna o esporte tão espetacular. Nas últimas duas semanas, essa mesma coluna alertou que Dennis havia esquecido que havia um postulante ao título que vestia um outro uniforme e que, ao contrário de todas as certezas, a vida às vezes prega peças. Pois é. Pregou.

Havia uma possibilidade de Hamilton perder o título, cair na armadilha de Fernando Alonso. E não é que ele caiu? O espanhol só tinha uma arma. Tentar desestabilizá-lo, para que o inglês cometesse um erro. Hamilton parecia nervoso desde a volta de apresentação, quando não acertava a posição correta do câmbio. A rotação do motor estava bem mais alta que o normal e a equipe o avisava para ter calma que tudo estava certo.

Na largada, ele logo perdeu a segunda posição para Raikkonen, errou a freada da chincane e quase bateu na traseira do finlandês, do que se aproveitou Alonso para ultrapassá-lo por dentro. Se tivesse ficado onde estava, seria o campeão. Mas ninguém sabe porque tentou passar o espanhol no final da reta oposta. Errou a freada, saiu da pista e caiu para o oitavo lugar. Para piorar, seis voltas mais tarde, errou uma troca de marcha e deixou o carro em ponto morto caindo para o 18º lugar.

A equipe, já desesperada, inventou mais uma troca de pneus, das duas previstas, o que tiraram do inglês qualquer possibilidade de recuperação. Seria muito difícil de qualquer maneira, devido ao desequilíbrio emocional de Hamilton, pagando um preço muito duro por uma imaturidade já revelada antes, na China, quando atolou na brita dos boxes.

Foi o preço do noviciado, talvez. Pode ser. O garoto tem lá seus 22 anos e querer crucificá-lo seria covardia. É verdade. Mas Hamilton também está longe de ser um coitadinho como os ingleses tentam moldar. Aliás, ninguém que tem a oportunidade de começar a carreira na F1 dentro de uma McLaren pode ser avaliado como tal. É uma oportunidade ímpar, que raramente é concedida mesmo para quem foi brilhante em categorias de base. A comparação que tentaram fazer dele, ser o primeiro campeão em um ano de estréia, fato que nem Senna ou Schumacher conseguiram, é absurda, já que eles não tiveram equipamento para tal.

Lewis sempre foi favorecido em todas as medidas tomadas pela FIA este ano. Se a entidade o tivesse punido, como faz com os outros pilotos, ele perderia alguns pontos, e entraria como azarão nessa disputa do título. Ele acabou vítima da "Hamiltonmania" que invadiu a Inglaterra e acabou não suportando a enorme pressão de ser quase campeão. Agora, é botar a cabeça no lugar e tentar se recuperar já no ano que vem. Talento ele tem, mas não será fácil. Para quem esteve tão perto da vitória, a derrota pode ser avassaladora.

Já para o bicampeão Fernando Alonso, o resultado da prova de Interlagos teve duplo sabor. O primeiro o da satisfação de ser, indiretamente, ou diretamente mesmo, o responsável pela perda do título de seu rival Hamilton, ao desestabilizá-lo. É fácil condenar Alonso, mas a pressão dentro da equipe de Wöking dá ao espanhol todos os motivos para se sentir injustiçado. A declaração de Dennis que a equipe estava contra ele só corroborou isso. É, "Fernandinho" deve ser o homem mais odiado na Inglaterra hoje. Mais do que Raikkonen, foi ele quem tirou o título das mãos do garoto.

Por outro lado, Alonso mostrou um outro semblante no pódio, como se pensasse "o título não foi para Lewis, ótimo, mas se não fosse aquela punição na Hungria, seria meu". Certamente, o espanhol está mordido e ainda deixou no ar uma dúvida: qual equipe ele defenderá em 2008?

O título que a McLaren não soube ganhar foi, e é bom que isso seja dito, merecidamente ganho pela Ferrari. E por Kimi Raikkonen. O julgamento do caso da espionagem em Paris, que inocentou os pilotos da McLaren, por si só, já seria razão suficiente para que a McLaren não merecesse o título. Ele mancharia para sempre a ética na F1. Quis o destino que uma outra razão, preterir um piloto de sua própria equipe em favor de outro, quando ainda havia um terceiro na disputa, destruisse completamente os planos da equipe de Dennis.

Foi justamente aí que a Ferrari ganhou o título. Ela deixou seus pilotos mostrarem quem era o melhor. O finlandês era o novato na equipe, mas quando se acostumou com o novo ambiente, deslanchou. Nas últimas 10 provas, ganhou 5, fez dois segundos e dois terceiros. Venceu três das últimas quatro provas, e conseguiu descontar a maior diferença de pontos para um líder na história da F1, com poucas provas para o final. Não foi pouco.

Raikkonen não faz parte dessas "prima donnas" que são a maioria dos pilotos da atualidade. Não reclama e nem fica se lamentando com a imprensa. É rápido como poucos e quase não comete erros. Quando os comete, não busca desculpas como a maioria. Não é simpático, é verdade, mas isso aqui não é concurso de simpatia. Mas é um homem íntegro, que jamais foi acusado de qualquer manobra desleal nas pistas.

Quando ficou claro que só Raikkonen poderia ser o campeão, a Ferrari fechou com ele e definiu a posição de Massa: um escudeiro. Com as turbulências dentro da McLaren, começava a se desenhar a reviravolta que aconteceria. A atitude da equipe de Maranello no Brasil foi perfeita. Tomar a ponta e, dependendo do que acontecesse com Hamilton, dar a vitória para Kimi. Com o inglês fora de combate, era só estabelecer essa troca de posição da forma que foi feita, adiantar a troca de Massa e pedir para o brasileiro dar uma maneirada para que Kimi tomasse a ponta.

Nada de errado nisso. Ninguém é louco de perder um título dessa forma. A McLaren o fez, contudo, em 2007. O pedido, pela equipe inglesa, da desclassificação das BMW e da Williams por irregularidades no combustível, mostra o último ato de desespero de uma equipe que teve o ano mais negro de sua história. Um final melancólico.

O título está, então, em muitas boas mãos. Chamado de homem de gelo, Raikkonen teve a frieza de descontar uma diferença de pontos absurda, que vai entrar para a história, renascendo das cinzas, assim como a Fênix, a ave mitológica. Não é qualquer um que faz isso. Kimi não é qualquer um. Seu antigo patrão parece não ter levado isso em consideração. E o preço que foi pago foi muito caro.

Otto Jenkel trabalhou no FOCA TV, cobrindo o GP do Brasil, quando a prova era disputada no Rio. Acompanha Fórmula 1 desde meados da década de 70, "quando a F1 era perigosa e o sexo seguro, hoje inverteu". Escreve sobre Fórmula 1 às segundas-feiras.

2 comentários:

Anônimo disse...

KIMI, CAMPEÃO !!!!!!! A muito tempo esse título já era merecido, pelo menos desde 2005 quando o homem de gelo era o piloto mais azarado da fórmula 1, ano este em que tudo aconteceu.
Depois de conhecer o carro e a equipe, com a ajuda dos mecânicos que eram de Schumacher, deixou o Massa pra trás e fez a sua parte aproveitando-se da briga de egos dos pilotos da Mclaren.

Mais uma ves, ótima coluna ! Parabéns, Bruno Marzano

Unknown disse...

Vc foi profético na semana passada... Bons comentários a respeito da pressão do Alonso sobre o Hamilton... que foi o verdadeiro "culpado" pelos erros grosseiros no final da temporada. Vc conseguiu ir a SP? Abraços do Franklin