segunda-feira, 15 de outubro de 2007

O inimigo mora ao lado



Por Otto Jenkel


Faltando uma semana para a decisão de um dos campeonatos de F1 mais disputados dos últimos 20 anos, todas as atenções deveriam estar somente voltadas para os três protagonistas que decidirão o título. No entanto, uma declaração de Ron Dennis, logo após o GP da China, acabou mudando o foco da disputa e cobriu o mundo do automobilismo de espanto.

Perguntado por um jornalista por que Lewis Hamilton se preocupou tanto em defender a liderança da prova contra as investidas de Kimi Raikkonen, sua resposta foi a mais direta possível: "Nossa (da McLaren) corrida não era contra Raikkonen, e sim contra Alonso". Inacreditável. Em mais de meio século de história, a F1 já proporcionou várias disputas internas entre pilotos da mesma equipe, mas nunca chegou a esse ponto: um chefe de equipe declarar que seu objetivo é prejudicar um piloto de sua própria escuderia, para favorecer o seu favorito, no caso Hamilton. E ponto final.

A mídia inglesa, evidentemente pró-Hamilton, passou a elogiar a "coragem" de Dennis de ter sido tão honesto a ponto de fazer tal declaração. Honesto? Depois de tudo que aconteceu esse ano, o que não falta a Dennis é uma boa dose de cinismo. A McLaren já deveria ter sido eliminada da temporada faz tempo, devido ao escândalo da espionagem, o que daria o título para Kimi Raikkonen, da Ferrari, com uma prova de antecipação. A FIA, que já se omitiu no julgamento de Paris, não divulgou uma única nota sobre a declaração de Dennis. Coerente. Na omissão, digamos.

Dennis alega que o próprio Alonso se jogou contra a equipe ao chantageá-lo, ameaçando repassar à FIA e-mails que deixavam claro que a espionagem na Ferrari era de conhecimento geral na McLaren. Pode ser. A atitude do "delator" Alonso foi indigna, mas o que dizer então da própria McLaren? Como definir essa espionagem sem parâmetros na história?

Alonso tem tomado pancada de todos os lados. Mas será que existe defesa para o asturiano? Talvez só uma. Alonso entrou na equipe como o melhor piloto do mundo, e trouxe à McLaren um know-how de quem tinha acabado de conquistar um bicampeonato pela Renault. A McLaren não ganha um título desde 1999, e ele se vê no direito de ter privilégios. Convenhamos que Alonso tem muito mais a oferecer a Hamilton do que o contrário. Além disso, o espanhol tem que agüentar a pressão insuportável de diversos setores da F1, que querem fazer de Lewis o novo campeão. A punição que Alonso recebeu na Hungria foi a gota d'água. Ele se sentiu roubado e ameaçou Ron Dennis. Foi feio sim, mas ele está praticamente sozinho.

Ao deixar claro que a equipe está contra Alonso, Dennis começa a brincar com os caprichos da história. Afinal de contas, o campeonato ainda não acabou e Kimi Raikkonen, da Ferrari, ainda pode estragar a festa inglesa. Não foram poucas as vezes na história da F1 que pilotos da mesma equipe tiraram pontos um do outro e acabaram dando o título para um piloto de outra equipe.

Em 1973, Ronnie Peterson entrou na Lotus para ser companheiro do então campeão Emerson Fittipaldi. A equipe não definiu quem seria o primeiro piloto, do que se aproveitou Jackie Stewart, da Tyrrell, para vencer o campeonato, mesmo tendo um carro inferior. A política da Tyrrell já era completamente diferente. O francês François Cevert era o segundo piloto e seu objetivo era fazer de Stewart o campeão. Cevert "escoltou" Stewart em várias provas, conseguindo três dobradinhas. A Lotus venceu sete vezes, quatro com Ronnie e três com Emerson. Já para a Tyrrell, foram cinco vitórias, todas com Stewart. Cevert sabia que seu sacrifício seria recompensado, já que Stewart estava se retirando das pistas e ele seria o primeiro piloto da Tyrrell em 1974. Só que ele não chegaria lá. Na última prova do ano, morreria nos treinos para o GP dos EUA.

Prejudicado em 1973, Emerson Fittipaldi acabaria beneficiado em 1974. Inconformado por não ter sido considerado primeiro piloto, Emerson abandonou a Lotus e foi para a McLaren, uma equipe que, até então, nunca havia sido campeã. Desta vez, o papel se inverteu. Emerson esteve absoluto na nova equipe, enquanto que sua maior rival de então, a Ferrari, deixou que seus pilotos Niki Lauda e Clay Regazzoni se digladiassem. Repetia-se a história de 1973. O melhor carro - desta vez, a Ferrari - não ganharia o título, que ficaria para a McLaren, com Emerson se tornando bicampeão do mundo.

Em 1981, foi a vez de mais um brasileiro, Nelson Piquet, da Brabham, se aproveitar de um duelo feroz travado dentro da equipe Williams, entre Carlos Reutemann e Alan Jones. O argentino Reutemann liderou quase o campeonato inteiro até perder o título para Piquet na última prova em Las Vegas. Prova vencida, aliás, por Jones, que não fez a menor questão de esconder no pódio toda a sua alegria pelo título não ter ido para o seu "companheiro" de equipe.

No ano seguinte, teríamos a rivalidade mais curta e trágica da história da F1. Gilles Villeneuve e Didier Pironi eram os pilotos da Ferrari. Havia uma política dentro da equipe de Maranello que dizia que quando seus pilotos tomassem a liderança de uma prova, as posições deveriam ser mantidas para evitar surpresas. Foi o que aconteceu no GP de San Marino, quando o líder Rene Arnoux, da Renault, quebrou, deixando a liderança para Villeneuve, com Pironi em segundo. O boxe da Ferrari pediu para os pilotos manterem as posições, mas Pironi desobedeceu e passou o canadense na última volta. Villeneuve ficou revoltado e prometeu nunca mais falar com Pironi. A guerra estava declarada, mas não duraria duas semanas.

Na corrida seguinte, na Bélgica, ao tentar superar o melhor tempo de Pironi nos treinos, Villeneuve bateu no March de Jochen Mass, o que fez seu Ferrari levantar vôo. O carro se desintegrou no ar e o canadense foi cuspido para fora do carro. A morte foi quase instantânea. Com isso, Pironi ficou absoluto na Ferrari e liderava o campeonato com facilidade até sofrer um gravíssimo acidente nos treinos para o GP da Alemanha, tendo múltiplas fraturas nas pernas. Mesmo fora das últimas cinco provas, Pironi acabou perdendo o Mundial por apenas cinco pontos para Keke Rosberg, da Williams. Nunca uma rivalidade custou tanto.

Por fim, chegamos a 1986, último ano em que três pilotos entraram na prova final do ano com chances de título. Curiosamente, também foi a última vez em que uma disputa interna custaria um Mundial. A Williams, com Nelson Piquet e Nigel Mansell, teve o melhor carro do ano, e o inglês chegou na Austrália dependendo de um quarto lugar para ser campeão. Alain Prost, da McLaren corria por fora. Este, durante a corrrida, teve um pequeno furo de pneu e trocou por compostos novos. Foi sua sorte. Os pneus que a Goodyear escolheu para a corrida tinham um erro de composição, e eles começaram a se deteriorar rapidamente.

O final foi cinematográfico. Com o título sendo decidido, houve uma hesitação por parte das equipes, pela troca ou não dos pneus, e com ela veio o caos. Keke Rosberg, companheiro de Prost, que liderava, abandonou com um furo. Piquet passou a líder, seguido por Prost e Mansell. Foi quando o inglês teve um estouro de pneu assustador em plena reta e, com muito custo, conseguiu evitar um acidente maior. Mas ficou fora. Piquet e Prost decidiriam quem seria o campeão. Como os pneus de Piquet estavam em frangalhos, não havia o que fazer, a não ser trocá-los. Prost passou a líder e ganhou a corrida e o Mundial. A Williams viu seu título evaporar em poucas voltas.

Voltando a 2007, o que pode acontecer em Interlagos? O título está nas mãos de Hamilton, não resta dúvida. Só que, em 1986, também tudo parecia favorecer Mansell. Deu no que deu. "Carreras son carreras", como diria o pentacampeão Juan Manuel Fangio. Jogar contra Alonso pode ser uma aposta arriscada de Ron Dennis. É brincar com a sorte. E o destino costuma pregar peças.

Otto Jenkel trabalhou no FOCA TV, cobrindo o GP do Brasil, quando a prova era disputada no Rio. Acompanha Fórmula 1 desde meados da década de 70, "quando a F1 era perigosa e o sexo seguro, hoje inverteu". Escreve sobre Fórmula 1 às segundas-feiras.

Um comentário:

Anônimo disse...

È, meu caro amigo. Não sabia que vc havia escrito esta coluna na semana passada. Parecia profética. E foi...
Boas lembranças de rivalidades internas q culminaram em fracassos, principalmente na dupla Gilles/Didier... Foi ver a corrida em SP??? Lembro da gente em frente a largada em 91, boas recordações...
abraços do Franklin