Por Flávio Izhaki
A beleza da rotina é sabê-la finita. Alterar o olhar quando o fim, o desfecho está próximo. Sorver aquele pequeno segredo de uma consciência que sabe mais do que as outras. Os últimos dias de escola, aquela mesma escola que você odiou por tantos anos seguidos, mas de repente não mais a expectativa pelo sinal do recreio, da possibilidade daquele gol antológico nas Olimpíadas, do beijo na menina mais bonita da série que vai morar na Inglaterra ano que vem.
A beleza triste de cumprir pela última vez um ritual, sacralizar cada detalhe do que foi sua vida até aquele momento. Depois daquele dia, não; talvez.
Tirou a calça do armário com cuidado para não amassar. Os vincos perpendiculares, macios. A camisa da mesma cor: azul, azul da cor do céu. Seu uniforme de tantas batalhas, vencidas a maioria. Os sapatos e o cinco brancos, para combinar. Vestiu cada peça já sentindo saudade, um sentimento esquisito, inusitado: a saudade que sentia parecia ser dele mesmo, como se aquele corpo já não lhe pertencesse, mas a idade.
Um nome, precisava escolher uma última pessoa, homenageado. Tinha de ser alguém amado, idolatrado, salve-salve, mas quem?
Ele já beijara todos: artistas, políticos, esportistas.
Olhou-se no espelho, fez menção de sorrir, o sorriso registrado para as câmeras, a posteridade. Mas não esse sorriso que o espelho refletia: essa boca amuada, os dentes gastos, a pele flácida cedendo para o pescoço. Esse rosto não era mais o dele.
Num passado remoto era convidado para as festas, ser beijado por ele era garantia de capa nos jornais, ele fazia as manchetes dia seguinte, e alguns até procuravam, insinuavam um pagamento por fora – nunca aceitou, era ele quem escolhia.
Quem fora seu preferido?, a pergunta quase uma sentença, feita por um jornalista, perfil nas páginas nobres da revistas semanais. A resposta na ponta da língua: Brizola.
Ele jamais escolhia os felizardos de improviso. Pesquisava. Os jornais, a televisão, os porteiros do prédio de conjugados onde morava...
Escolheu Obina.
Não que soubesse quem era Obina antes do murmurinho da pesquisa, mas sabia que fizera a escolha perfeita: centroavante do Flamengo, jogo no Maracanã.
Chegou no estádio já com a bola rolando, lera que Obina só entraria no segundo tempo.
Não queria chamar atenção antes da hora. Seu show seria no campo.
Não precisou de muito para entrar nas cadeiras sociais, sempre conseguia. Chegou a tempo de ver o primeiro gol do Flamengo. O Maracanã tremendo, o coração acelerado, dele e de todos. Perguntou por Obina para o jovem sentado ao lado dele: só no segundo tempo. Mas entra mesmo? A resposta um sorriso, escárnio, entra, claro.
No intervalo foi ao banheiro, mas evitou-se olhar no espelho. O rosto que queria levar de recordação não era do daquela última vez.
Início do segundo tempo. Era a hora de descer aos vestiários, sabia os caminhos, as passagens secretas, o modo de sorrir com uma nota amassada entre os dedos.
Cada passo, a memória de um rosto beijado. Primeiro Garrincha, estréia em grande estilo: Mane riu, deixou o beijo estalado ressoar segundos na sua bochecha. Depois disso foi fácil. Ninguém jamais ousou revidar, bater, xingar, Nilton Santos, Bellini, Zagallo, Pelé, doze vezes, o recordista, Rivellino, Zico, Dinamite, Romário, Ronaldo e agora Obina.
Escutou o grito da torcida pedindo o ídolo: 2 a 0, 3 a 0, o técnico mandou chamar. A massa delira, canta que é melhor que Eto’o. Mas Eto’o nunca seria beijado.
Ele já posicionado no último degrau da boca do túnel de acesso ao campo, agachado, anônimo, um velho vestido de céu azul em dia de goleada do Flamengo. Obina entra, corre de um lado para outro do campo, toca na bola, sofre falta.
Sabe que é chegada a hora. Avança pela lateral do campo, corre, corre, as pernas tentando acompanhar a cabeça, corre, corre, mas Obina ainda muito longe, corre, corre, Obina ainda um ponto negro no horizonte.
O tempo está se esgotando, sabe, os gritos da torcida aumentam de volume, uma onda de barulho a seu favor, corre, corre, finalmente já consegue divisar o rosto de Obina-mas-então-a-polícia. Chave de braço, pescoço, gritos, apertam para valer.
O último beijo não vai acontecer...
Mas Obina trota, majestoso, imperial, divino, e cola sua bochecha na boca do velho.
Final feliz.
Um comentário:
Flávio, praticamente revivi o que estava sentindo na arquibancada do Maraca! Abs Joao
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